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Dionísio x lucidez

Dr. Leandro Freitas Colturato

Dionísio era o Deus da fertilidade, folia, vinho e loucura. Ele é o único Deus que possui um parente mortal, sua mãe, Sêmele. Possuía uma dupla natureza: de um lado, trazia alegria e êxtase divino e, por outro, trazia a loucura, a raiva brutal e irracional. Simbolicamente, sua natureza refletia os efeitos da embriaguez. Se ele quisesse, poderia deixar qualquer homem louco.

O fim da explicação da loucura pela mitologia veio com Hipócrates. Ele foi a primeira pessoa a ver a loucura de uma forma orgânica. Para ele, a loucura deriva do desequilíbrio entre os quatro humores (bílis amarela, verde, potuita e sangue). Foi o primeiro a descrever que a loucura vinha do cérebro e não dos Deuses.

Dionísio, sem dúvida, rondou a Segunda Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ) neste último dia 8 de junho, quando em julgamento finalizado, a lucidez de 6 dos 9 ministros entendeu ser taxativo, em regra, o rol de procedimentos e eventos estabelecido pela Agência Nacional de Saúde (ANS). Portanto, as operadoras de saúde não são obrigadas a cobrir tratamentos não previstos na lista. Sabiamente, o colegiado fixou parâmetros para que, em situações excepcionais, os planos custeiem procedimentos não previstos na lista, a exemplo de terapias com recomendação médica, sem substituto terapêutico no rol, e que tenham comprovação de órgãos técnicos e aprovação de instituições que regulam o setor. Definiu-se também a possibilidade de contratar cobertura ampliada ou negociar aditivo contratual para a cobertura de procedimento extra rol.

No Brasil, episódios em que a lucidez vence o Deus da loucura têm sido raros. Nesta ocasião, a lucidez é fundamental para o funcionamento adequado do sistema de saúde suplementar e público. A vitória de Dionísio, sem dúvida alguma, traria a inviabilidade da saúde integral no nosso país. A judicialização da medicina, já corriqueira, seria absurda e incontrolável. Entre 2008 e 2017, as demandas relativas à saúde na Justiça cresceram 130% e, entre 2015 e 2020, resultaram em mais de 2,5 milhões de processos, segundo levantamento do Conselho Nacional de Justiça. É uma situação insustentável e, acredite, injusta aos pacientes. Os planos são incentivados a negar procedimentos porque sabem que a maioria dos usuários não irá à Justiça, somente aqueles que têm tempo e que podem arcar com o custo do processo.

Vale lembrar que em nenhum outro país do mundo há lista aberta de procedimentos e eventos em saúde de cobertura obrigatória pelos planos de saúde e pelo sistema público. A lista da ANS é elaborada com base em profundo estudo técnico e científico, definida a partir de sucessivos ciclos de atualização, a cada 6 meses. A prescrição de uma terapia ineficaz, sem comprovação científica, ou uma nova com preços sobrenaturais resulta em prejuízo ao usuário e ao sistema de saúde como um todo. Quando a lista de procedimentos fica em aberto, não há controle de segurança, efetividade e custo-benefício.

Cabe a todos nós, médicos e usuários, examinarmos a lista da ANS e as obrigações impostas aos planos e cobrarmos que a ANS mantenha um rol de procedimentos compatível com os melhores tratamentos disponíveis, que ofereça tratamentos comprovados com uma boa relação custo-benefício e, principalmente, que não se transforme em uma marionete nas mãos dos grandes empresários da saúde suplementar. A Associação Paulista de Medicina – Regional de São José do Rio Preto estará sempre a favor da medicina ética, da ciência e da lucidez. Até a próxima, Dionísio.


Dr. Leandro Freitas Colturato é médico ginecologista e presidente da Associação Paulista de Medicina (APM) – Regional de São José do Rio Preto.